Função social, coluna mestra da propriedade. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Temos que
pensar as sociedades, os territórios e a globalização transnacional do capital
não apenas como espaços, movimentos e identidades homogeinizantes. Em Minas
Gerais, por exemplo, temos grande diversidade territorial e cultural. No sul de
Minas, as monoculturas do café e do pasto predominam. No sudoeste de Minas, os
canaviais estão mudando o panorama territorial. No Triângulo Mineiro, a
pecuária e as monoculturas do café, da cana e do capim. Em Belo Horizonte e
Região Metropolitana, no quadrilátero ferrífero, que é primordialmente um
quadrilátero aquífero, a explotação de minério de ferro há mais de 300 anos
está desfigurando o território e desertificando vários territórios.
Monoculturas do eucalipto estão alastrando-se em Minas Gerais nas regiões
norte, noroeste e Vale do Jequitinhonha. Minas Gerais é estado mais assolado e
devastado pela monocultura do eucalipto. As comunidades quilombolas estão
espalhadas por quase todo o território mineiro, em mais de 600 já com
autorreconhecimento. No
Brasil, a Fundação Palmares contabiliza a certificação de 2821 comunidades como
remanescentes de quilombo rural ou urbano. Espalhados em todas as regiões de
Minas Gerais estão os centenas de acampamentos e 422 assentamentos de Sem Terra
do MST e de vários outros Movimentos de luta pela terra. No norte de Minas
estão também as comunidades tradicionais: geraizeiros, vazanteiros e
ribeirinhos, nas margens dos principais rios. Nessa perspectiva, pode-se
inferir que cultura ou território, enquanto um espaço carregado de
historicidade, não existe de forma estagnada, fixa, mas como uma cultura
dinâmica, construída a partir de uma situação relacional aberta, e em
movimentos constantes de mudanças, de fluxos, e contrafluxos.
Neste
contexto é necessário compreendermos a função social da propriedade da terra
como coluna mestra da propriedade. A terra não é apenas pátria (pai), mas mãe: pacha mama, como os povos indígenas quéchuas
a chamam e a representam como uma mulher levando ao colo sua criança.
Interessa-nos a função social da propriedade da terra, pois propriedade é um
conceito, algo abstrato, que se tornou “um
direito criado, inventado, construído, constituído” (MARÉS, 2003, p. 117).
Para se compreender a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana,
temos que analisar a fundo a questão da propriedade capitalista da terra.
Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias (2005), no artigo Função Social da Propriedade: dimensões
ambiental e trabalhista, asseveram: “A propriedade não é mais direito
absoluto. Com efeito, embora parte da doutrina e jurisprudência, de forma
totalmente contrária ao sistema posto, relute em negar proteção absoluta ao
direito de propriedade, o fato é que o ordenamento constitucional e
infraconstitucional veem que pesa sobre a propriedade uma hipoteca social”
(JÚNIOR; FARIAS, 2005, p. 13).
A esse propósito nos referimos à decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI[2] nº 2213,
que diz: “O direito de propriedade não se
reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a
significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art.
5º, XXIII), a propriedade deixa de
existir”. Há jurisprudências no sistema judiciário brasileiro em que
pedidos de intervenções judiciais da União em estados da federação foram
negados[3].
Por exemplo, na primeira semana de agosto de 2014, a Corte Especial do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) publicou acórdão em que negou, por unanimidade,
pedido de intervenção federal no Paraná para compelir o governo do Estado a
realizar reintegração de posse com uso da força ao proprietário da Fazenda São
Paulo, no município de Barbosa Ferraz, que tinha escritura e registro, mas não
cumpria a função social. Essa decisão do STJ na prática definiu que a
propriedade não é um direito absoluto e que, por isso, mesmo que o proprietário
tenha conseguido na justiça estadual a reintegração de posse, a execução da
determinação judicial causaria muitos danos sociais às 240 famílias de
camponeses Sem Terra do MST[4]
que tinham ocupado a fazenda por dois motivos principais: por necessidade,
isto, porque vários princípios constitucionais, tais como: respeito à dignidade
humana, função social da propriedade e direito à terra, não estavam sendo
oferecidos pelo Estado e, porque a fazenda estava abandonada sem cumprir função
social. Logo, para ser coerente com os princípios constitucionais e também com
o objetivo da Constituição de 1988 que busca construir uma sociedade que supere
as desigualdades e a miséria, a Corte Especial do STJ tomou uma decisão justa e
sensata. Essa decisão foi saudada pelo MST, CPT[5]
e ONG Terra de Direitos, mas foi duramente criticada pela mídia e por advogados
e professores de Direito que ainda absolutizam o direito à propriedade.[6]
A propriedade, segundo a ideologia dominante, é
algo sagrado, intocável, mas se há algo de sagrado e de absoluto na propriedade
é a sua função social, que constitui, em síntese, o seu perfil
constitucional. O constitucionalista
José Afonso da Silva, afirma
que “[...] a doutrina se tornara de tal
modo confusa a respeito do tema, que acabara por admitir que a propriedade
privada se configura sob dois aspectos: a) como direito civil subjetivo e b)
como direito público subjetivo. Essa dicotomia fica superada com a concepção de
que a função social é elemento da estrutura e do regime jurídico da
propriedade; é, pois, princípio ordenador da propriedade privada; incide no
conteúdo do direito de propriedade; impõe-lhe novo conceito”, conforme se
lê no Curso de Direito Constitucional Positivo (SILVA, 1992, p. 241). Enfim, diferentemente
da Constituição da época do Império, a Constituição de 1988 não assegura o
direito absoluto à propriedade e condiciona o direito à propriedade ao
cumprimento da sua função social. Portanto, a função social é a coluna mestra
da propriedade. Sem função social, a propriedade não é constitucional e nem
legítima.
07/12/2021
Referências
MARÉS, Carlos Frederico. A
função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.
PINTO JÚNIOR, Joaquim Modesto;
FARIAS, Valdez Adriani. Função social da
propriedade: dimensões ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de Estudos
Agrários e Desenvolvimento Rural, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1992.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1
– Fora Heineken da APA Carste de Lagoa Santa/MG! Fora, Rodoanel da RMBH! Sim p
preservar o ambiente!
2 - NÃO
ao PL 1480/21 que altera os limites do Parque Estadual Alto Cariri para
mineração. SIM Piabanha
3 - Rodoanel
na RMBH, racismo ambiental. Fora, Rodoanel! Respeite Santa Luzia/MG. Glaucon
Durães na ALMG
4 - Adv.
Henrique Lazarotti mostra a atrocidade que será Rodoanel na RMBH, se for
construído. Na ALMG/BH
5 - Frei
Gilvander na ALMG: "Qualquer Alternativa de Rodoanel na RMBH será
brutalmente devastadora."
6 -
Acampamento Marielle Vive, em Valinhos, SP, sob ameaça de despejo. Basta de
despejo! – 28/11/21
7 -
Qualquer alternativa de traçado de RODOANEL na RMBH será devastadora (Frei
Gilvander/Rádio América)
8 - Ato
“Fora, Bolsonaro na Periferia”, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, MG:
BASTA! – 27/11/21
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da
CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB
(Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Ação Direta de Inconstitucionalidade.
[3]
Cf. IF 111/PR, Rel. Ministro Gilson Dipp, Corte Especial, julgado em 1º/7/2014,
REPDJe 6/8/2014, DJe 5/8/2014).
[4]
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br
[5]
Comissão Pastoral da Terra – www.cptnacional.org.br
[6]
Cf. Reportagem “Quando ocupar é um direito: decisão do STJ repercute na mídia” e
quatro artigos que discutem a decisão do STJ, no link a seguir: http://terradedireitos.org.br/2014/08/27/quando-ocupar-e-um-direito-decisao-do-stj-repercute-na-midia/
.