terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Preservação integral da Mata do Jardim América: questão de vida! Por frei Gilvander

  Preservação integral da Mata do Jardim América: questão de vida! Por frei Gilvander Moreira[1]


Em Belo Horizonte, MG, além de justo e ético, tornou-se necessária a preservação INTEGRAL da Mata do Jardim América, bairro que, por causa da quantidade e exuberância de árvores na sua origem, foi batizado com Jardim em seu nome. Estudo nas áreas de Arquitetura e Ciências Biológicas considera que as áreas verdes como a Mata do Jardim América integram a ‘floresta urbana’ de Belo Horizonte, que se constitui pela soma de toda vegetação arbórea a ela associada, existente na área urbana ou circundante. “A ‘floresta urbana’ sequestra carbono (C) em biomassa aérea e pelo solo, se tornando um dos principais serviços ecossistêmicos florestais, entre os quais: melhoria microclimática, conservação da biodiversidade, fertilidade do solo, produção de alimentos, absorção de poluentes e partículas, prevenção e redução da erosão, purificação da água e alívio da poluição sonora, aos quais também se agregam os de natureza recreativa, educativa e estética – relacionados ao potencial de interação cultural das ‘florestas urbanas’ com as populações das cidades” (AMARAL; COSTA; MUZZI, 2017, p. 164-165).

Com o adensamento populacional dez bairros da zona oeste de Belo Horizonte têm apenas a Mata do Jardim América, com apenas 21.528,56 m² (pouco mais do que dois campos de futebol), situada na Avenida Barão Homem de Melo, próximo ao número 600. Este “pequeno pulmão” está ameaçado por empreendimento imobiliário devastador, enquanto, ofegante, produz oxigênio e umidade para dez bairros da zona oeste de Belo Horizonte, onde habitam mais de 140 mil pessoas e milhares de outros seres vivos: bairros Jardim América, Gutierrez, Nova Suíça, Nova Granada, Calafate, Prado, Barroca, Alto Barroca, Salgado Filho e Grajaú.

A Mata do Jardim América é quase dez vezes menor do que a Mata do Planalto (200.000m2) na zona norte de Belo Horizonte, que após treze anos de luta, com muita organização comunitária, convencemos o ex-prefeito Alexandre Kalil a desapropriá-la para que se torne um Parque Municipal Ecológico, garantindo a preservação integral desta Mata, que também estava ameaçada por megaprojeto da construtora Direcional.

Belo Horizonte era reconhecida como Cidade Jardim ou Roça Grande por causa do elevado número de árvores que tinha, mas nas últimas décadas se intensificou a devastação ambiental na capital mineira, que foi construída aos pés do Curral Del Rey, porque estava em uma região de cerradão e matas com mananciais capazes de abastecer uma população de até três milhões de pessoas. Acontece que desde a fundação de Belo Horizonte, em 1893, derrubar árvores e “sepultar” córregos e rios tem sido a regra na capital mineira hoje já com mais de 2,5 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Já são mais de 200 córregos e rios canalizados (“sepultados”) em Belo Horizonte e, como sempre, ao lado dos córregos e rios são Áreas de Proteção Permanente (matas ciliares e capoeiras). A história de Belo Horizonte acumula também a derrubada de milhares de árvores para se construir grandes avenidas sobre córregos e rios, tais como: Av. Afonso Pena, Av. Amazonas, Av. Teresa Cristina, Av. Prudente de Moraes, Av. Cristiano Machado, Av. Antônio Carlos, Dom Pedro I e II, Av. Tancredo Neves etc. Vários mananciais que abasteciam Belo Horizonte também já foram dizimados, como o da Pampulha. Belo Horizonte é hoje um município sem área rural e que recebe água para abastecimento público de municípios da região metropolitana.

A Mata do Jardim América com toda sua biodiversidade (flora e fauna) clama por socorro, porque está brutalmente ameaçada de devastação pelas Construtoras Masb e Patrimar Novo Lar, que têm projeto de construir na Mata arranha céus, em prédios de até 17 andares, com cerca de 400 apartamentos de luxo e 800 vagas de garagem. Este brutal e devastador projeto condena à morte mais de mil árvores e milhares de animais e seres vivos pequenos. Se na Mata do Havaí, em Belo Horizonte, a construtora Precon derrubou 970 árvores em apenas um hectare (10.000m2), na Mata do Jardim América deve ter muito mais árvores. Este projeto de interesse do grande capital é ecocida, pois causará a morte de milhares de seres vivos que têm a Mata do Jardim América como sua moradia, seu ninho, seu abrigo. Exigimos a suspensão deste projeto de morte, um massacre de árvores e animais, causando a morte e descaracterizando, assim, todo o ambiente, causando prejuízos irreversíveis à fauna, à flora, à história da cidade de Belo Horizonte e toda a sua população.

Em contexto de agravamento brutal das mudanças climáticas, estado de Emergência Climática, com eventos extremos cada vez mais letais como a maior chuva da história do Brasil, no Litoral Norte de São Paulo, em São Sebastião e região, que causou a morte de dezenas de pessoas e muita destruição, será uma ação criminosa e assassina devastar a Mata do Jardim América. Cada árvore é uma grande usina produtora de vida, de oxigênio, de umidade, de chuva. Quanto mais árvores preservadas, plantadas e cuidadas, melhor clima e sequestro de carbono teremos. Quanto menos árvores, mais poluição, mais doenças e morte. Sem árvores não se forma os rios aéreos que viabilizam chuvas.

A Mata do Jardim América já foi muito maior, possui uma extraordinária biodiversidade de flora e fauna. Tem na mata uma série de árvores nativas, Mata Atlântica protegida pela Lei Federal 11.428/2006 e muitas espécies ameaçadas de extinção. Ali tem tucanos, maritacas, micos e milhares de pássaros que dependem desta, que é a última área verde da região oeste de Belo Horizonte. Pesquisas de mestrado e doutorado da UFMG comprovam que com o avanço do agronegócio em monoculturas desertificando os territórios, milhares de pássaros e outros animais estão buscando refúgio nas franjas verdes das cidades.

O nível de áreas verdes na região oeste de Belo Horizonte está muito abaixo do mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Não podemos fechar os olhos diante desse massacre que vai afetar a vida de todo o povo de Belo Horizonte e da biodiversidade. Conforme o Plano Diretor de Belo Horizonte, a Mata do Jardim América agora se enquadra como Área de Preservação Ambiental (PA 1), de máximo grau de proteção, o que exige que as autoridades respeitem a vida e a natureza no local. Por isso, reivindicamos a anulação da Licença Ambiental já concedida pela Prefeitura de Belo Horizonte e a anulação do acordo intermediado pelo Ministério Público de Minas Gerais, realizado sob pressão, com sérios indícios de coação. A Mata do Jardim América, segundo a prefeitura de Belo Horizonte, é Área de Risco de Contaminação do Lençol Freático, já que ali existe a sub-bacia do Córrego Piteiras, que pertence à Bacia do Ribeirão Arrudas, rio das Velhas, rio São Francisco. E é também Área de Risco Associada a Escavações.  

Em total contradição com o objetivo de se construir uma cidade sustentável e ecológica, a Licença Ambiental prevê a derrubada de 465 árvores (na realidade serão muito mais!), entre elas dezenas de jacarandás, cedros, copaíbas e ipês, muitas centenárias. Isto violará flagrantemente a Lei 11.428/2006 e o art. 225 da Constituição Federal que determina: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” E afirma no § 1º,  inciso VII: “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

Derrubar a Mata do Jardim América e impedir que a sociedade participe de decisões que afetam tão seriamente as nossas vidas e o meio ambiente contrariam os acordos internacionais assinados pelo Brasil junto à ONU para o cumprimento dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS)! Exigimos desmatamento zero! Nenhuma árvore a menos! A proteção integral da Mata do Jardim América é imprescindível. A compensação com o plantio de mudas não resolve, é maquiagem obscena e nojenta! O direito de ter áreas verdes e parques ecológicos não pode ser exclusividade dos bairros ricos. Este direito não pode nos ser tomado. Queremos uma cidade jardim para todos! Um parque ecológico, limpo, digno e seguro para todos!

Até quando as autoridades vão continuar permitindo lucro e acumulação de capital de alguns à custa do prejuízo de todos? A história vai cobrar de todas as autoridades. A população e todas as forças vivas de Belo Horizonte lutam para que a Mata do Jardim América não seja devastada. Pedimos socorro a todas as autoridades! Os direitos da natureza precisam ser respeitados. Exigimos a PRESERVAÇÃO INTEGRAL DA MATA DO JARDIM AMÉRICA. Que a Mata do Jardim América seja desapropriada pelo prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman, e transformada em um Parque Municipal Ecológico. Esta é a reivindicação do Movimento SOS Mata do Jardim América.[2] Com muita luta estamos garantindo a preservação integral da Mata do Planalto na zona norte de Belo Horizonte e da Mata do Havaí. Conquistaremos também a preservação integral da Mata do Jardim América. Bem-vindos/as à luta!

Referência

AMARAL, Rubens; COSTA, Staël de Alvarenga Pereira; MUZZI, Maria Rita Scotti. “O Sequestro de Carbono em Trechos da Floresta Urbana de Belo Horizonte: por um Sistema de Espaços Livres mais Eficiente no Provimento de Serviços Ecossistêmicos Urbanos”, em PAISAG. AMBIENTE: ENSAIOS, n. 39 - SÃO PAULO, 2017, p. 163-179.

21/02/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Visão panorâmica da Mata do Jd. América em BH/MG. Lutamos por Preservação INTEGRAL da Mata. SOS MATA

2 - Mata do Jd. América, BH/MG, ameaçada de extinção pelas construtoras Masb e Patrimar Novo Lar. SALVE!

3 - Vereadores/as de BH, EXIGIMOS Preservação integral da Mata do Jd. América em BH/MG! Fora, Patrimar!

4 - Frei Gilvander e CPT: Exigimos a Preservação integral da Mata do Jd. América, BH/MG! Natureza, SIM!

5 - Prédios de 17 andares com quase 500 aptos de luxo na Mata do Jd. América em BH/MG? Inadmissível!

6 - Fora, construtora Patrimar da Mata do Jd. América, BH/MG! PRESERVAÇÃO INTEGRAL DA MATA EXIGIMOS, JÁ!

7 - “Basta de propostas conciliatórias sobre a Mata do Jd. América, em BH/MG! Preservação 100%, JÁ!"

8 - Basta de especulação imobiliária na Mata do Jd. América, em BH/MG! O justo é preservação 100%, JÁ!

9 - Mata do Jd. América em BH/MG, único pulmão de 11 bairros de BH. Preservação INTEGRAL 100%, JÁ! v. 2

10 - Preservação INTEGRAL da Mata do Jd. América, em BH/MG, JÁ! Abraço à Mata. Fora, construtora Patrimar

11 - SALVE a Mata do Jd. América, em BH/MG, com urgência! Anulação do acordo injusto e sob coação, JÁ!



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] No Instagram @sosmatajardimamerica ASSINE A PETIÇÃO E PRESSIONE AS AUTORIDADES PELA PRESERVAÇÃO INTEGRAL DA MATA DO JARDIM AMÉRICA! Participe da luta pela preservação da Mata do Jardim América, em Belo Horizonte, MG.

   

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Luta pela terra e pelas necessidades básicas gera emancipação. Por frei Gilvander

 Luta pela terra e pelas necessidades básicas gera emancipação. Por frei Gilvander Moreira[1]

Os últimos raios de sol do dia 07/02/2020, ainda iluminavam o fim da tarde em União dos Palmares, na Zona da Mata de Alagoas, quando em marcha, cerca de 200 jovens, de bandeiras nas mãos, cantando canções de liberdade, inauguravam o Bosque da Resistência Ana Primavesi. Lá, as mãos dos filhos e filhas da luta pela terra, plantaram mil mudas de árvores simbolizando a disposição na luta pela terra e pelos bens da natureza. Foto: Matheus Alves

Que tipo de utopia os camponeses e camponesas Sem Terra cultivam e se nutrem na luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana? Não pode ser a simples estatização de todas as propriedades rurais. Também não pode ser qualquer tipo de socialização da terra. Há de se considerar as diversidades culturais, regionais, históricas e de identidades do campesinato. A autonomia dos Sem Terra, sujeitos sociais coletivos que lutam pela terra no campo, se torna impossível sem a autonomia dos sujeitos individuais, isto é, das camponesas e dos camponeses Sem Terra que se comprometem em tal luta. Logo, toda e qualquer posição pessoal ou dos movimentos sociais populares, relação interpessoal ou social, que cerceia o processo de autonomização obstaculariza a emancipação pessoal e social, que é um grande objetivo da luta pela terra como pedagogia de emancipação humana. Não nos referimos aqui à autonomia no sentido de poder fazer o que quiser, mas no sentido de fazer história com as próprias mãos desenvolvendo o infinito potencial de humanização existente em cada ser humano.

Ao explanar sobre as necessidades pessoais, Karl Marx estabeleceu a prioridade da satisfação das necessidades materiais objetivas em relação às necessidades espirituais, mas observamos que o povo tem tanta fome de pão - necessidade material (base da vida) - quanto fome de Deus – necessidade espiritual. Óbvio que Marx não se referia à necessidade espiritual no sentido religioso, mas no sentido de tudo o que é simbólico – sonhos, autoestima, desejos, aspirações etc. -, para além da base material da vida. Não dá para relegar as necessidades espirituais/simbólicas para segundo ou terceiro plano e muito menos ignorá-las. Não é inquestionável a afirmação segundo a qual ‘religião, futebol e política não se discutem’.  Muitas vezes, as pessoas brigam mais por questões religiosas do que por questões estritamente políticas, até porque toda questão religiosa é também uma questão política. Nesse sentido, o pensador Ovidio Hernández fez referência a Abraham Maslow, que elaborou uma teoria sobre as escalas de necessidades humanas, assim raciocinando: “Ele coloca, de forma geral, a prioridade da satisfação das necessidades de sobrevivência (alimentação, proteção física etc.); Num lugar intermediário, situa a satisfação das necessidades de autoestima (a importância da consideração, do respeito, da pertença e da identidade na esfera individual e social, e o amor aos outros e a si próprio) e considera que, nestas bases de sustentação, desenvolvem e satisfazem, entre outras, as necessidades superiores de autonomia e autorrealização” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 132).

Há uma íntima relação entre as necessidades materiais – necessidades de sobrevivência (alimentação e proteção física; aqui se coloca a moradia, acesso à terra, por exemplo) -, as necessidades de autoestima – consideração, respeito e cultivo da identidade pessoal e amor aos outros e a si mesmo – e as necessidades superiores de autonomia e de autorrealização. Concordamos com o pensador Jorge Acanda e com Abraham Maslow no sentido de que não há como realizar e desenvolver a autonomia pessoal e social e construir autorrealização sem atendimento às necessidades básicas elementares materiais e de autoestima. Aqui está um ponto central da luta pela terra, porque se trata de uma luta concreta que viabiliza o atendimento, primeiro, das necessidades básicas de alimentação, pelo plantio nas terras ocupadas; em seguida, a autoestima das camponesas e dos camponeses Sem Terra, nas ocupações em luta pela terra melhora gradativamente, porque as pessoas passam a ser consideradas, acolhidas e respeitadas na sua dignidade. Esse caminho se aproxima da conquista da necessidade mais ampla, que é a de emancipação e autorrealização.

Na madrugada do dia 21 de dezembro de 2003, no município de Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, MG, após três anos de acampamento ao lado de uma estrada, ao lado de uma fazenda improdutiva, vinte famílias ocuparam uma propriedade de 154 hectares, sendo 14 hectares de capim e o resto Mata Atlântica. Alugaram um trator de um camponês da região e araram a terra dos 14 hectares de capim. As vinte famílias trabalharam três dias e três noites ‘sem parar’ plantando os 14 hectares de terra com sementes de hortaliças, porque as crianças estavam anêmicas e tinham que obter alimento o mais rápido possível. “Nossos filhos estavam anêmicos, mas foi só começarem a comer os alimentos produzidos com adubação orgânica e agroecológica, graças a Deus, estão todos bem nutridos, o que é atestado pela Pastoral da Criança”, informou-nos, feliz da vida, dia 22 de setembro de 2007, a Sem Terra Valéria Antônia Silva Carneiro, assentada no Assentamento Pastorinhas desde 2006[2]. 

Na luta pela terra, pelo menos em parte, contempla-se o que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) enunciou, em 1995, como sendo as quatro aprendizagens básicas: aprender a conhecer, aprender a conviver, aprender a fazer e aprender a ser (DELORS, 2010, p. 31), mas, atenção! Aprender sempre tomando-se por base os sujeitos injustiçados, valorizando suas experiências, problematizando a realidade sempre desde a perspectiva dos Sem Terra, eliminando a hierarquia entre os saberes, incentivando a criatividade e a compreensão de que o outro que está na horizontalidade não é um inimigo, mas alguém sem o qual não posso me emancipar e nem autorrealizar.

A luta pela terra como pedagogia de emancipação humana realiza, em alguma medida, o que apregoou Giulio Girard: “É, essencialmente, quebrar a comunidade educativa que traduz a sociedade de dominação para criar uma que anuncie a sociedade da autogestão. A educação libertadora deve, portanto, superar primeiro a relação autoritária entre educadores e alunos. Não suprime a autoridade, mas transforma radicalmente seu significado. [...] substituirá as motivações tradicionais baseadas na competição, no individualismo e no egoísmo, motivações de outra ordem que se baseiam na generosidade, no espírito de equipe e na solidariedade com os oprimidos. [...] a educação libertadora é iluminada por essa busca de sentido” (GIRARDI, 1998, p. 54-55).

A luta pela terra constitui-se, portanto, como pedagogia de emancipação humana por vários aspectos. Primeiro: nela, a reflexão é feita sempre no sentido de compreender a sociedade existente como sendo uma construção histórica capitalista, de classes com interesses antagônicos, em que a classe trabalhadora e o campesinato são injustiçados. A dominação é questionada teoricamente e na prática. Segundo: a regra geral é cuidar para que posturas autoritárias não apareçam e se surgirem devem ser questionadas imediatamente. Isso anima o potencial humano existente em todas as pessoas. Terceiro: ciente de que disciplina e autoridade são necessárias na luta pela terra, sempre é alertado para que o exercício da autoridade não descambe para o autoritarismo, nem para o personalismo, nem para o messianismo, nem para o populismo. Quarto: deve-se cultivar o espírito de solidariedade e de ajuda mútua, o que é um antídoto ao individualismo apregoado pela ideologia dominante na sociedade. Assim, a luta pela terra compreende uma práxis social sendo uma unidade inseparável de reflexão e ação.

 

Referências

ACANDA, Jorge Luis. Luces y sombras, la apropiación de Gramsci en Cuba en el último decenio. In: Hablar de GramsciLa Habana: Centro Juan Marinello, 2003.

___. Sociedad civil y hegemonía. La Habana: Centro Juan Marinello, 2002.

DELORS, Jacques et alii. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Brasília, UNESCO, 2010.

GIRARDI, Giulio. Por una pedagogía revolucionaria. In: Caminos, vol. I. La Habana, 1998.

HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidadLa Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.

14/02/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Visão panorâmica da Mata do Jd. América em BH/MG. Lutamos por Preservação INTEGRAL da Mata. SOS MATA

2 - “Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso Quilombo Araújo, Betim, MG”. Vídeo 4

3 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3

4 - Ato Público e Culto na Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Início/Vídeo 1

5 - Culto de Resistência n Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Luta! Vídeo 2

6 - "Se Medioli não respeita pobres e derruba suas casas, não pode mais ser prefeito de Betim/MG": Zélia

7 - “Em Betim/MG, prefeito Medioli faz guerra contra os pobres e destrói casas” (Adv. Dr. Ailton Matias)

8 - Na ALMG: “Da nossa Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG, só saímos mortos”

9 - Frei Gilvander, na ALMG: “Despejo Zero não só até 30/6/22, mas para sempre! Cadê a função social?”


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Participação e Autonomia na Luta por Direitos. Por frei Gilvander

 Participação e Autonomia na Luta por Direitos. Por frei Gilvander Moreira[1]

8 de Março de 2018 em Feira de Santana, na Bahia: MULHERES NA LUTA POR DIREITOS, DEMOCRACIA E AUTONOMIA. Foto: Divulgação Redes Virtuais

Em uma sociedade capitalista com uma brutal desigualdade socioeconômica e política, compreendemos a luta pela terra, por território e por moradia como sendo uma pedagogia de emancipação humana que, sob certo sentido, desconstrói uma educação integradora no sistema do capital como “aquele cujo real objetivo, consciente ou inconscientemente, é integrar o indivíduo à sociedade, tornando-o um bom cidadão, isto é, uma pessoa de ordem, por meio da inculcação da ideologia dominante. Dessa forma, a educação inclusiva é fator fundamental para a reprodução da sociedade” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 48).

O tema da autonomia é central na psicologia, na filosofia e, em geral, nas ciências sociais. Se as/os trabalhadoras/res e as/os camponesas/ses não se tornam sujeitos autônomos de suas vidas e da sua existência não dá para construir emancipação. Segundo a psicologia humanista (C. Rogers, E. Fromm, por exemplo), a pessoa existe para ser autônoma. Sem autonomia, a pessoa não se realiza humanamente. “Para J. Piaget, o esquema do desenvolvimento da individuação suscita a transição do egocentrismo para o sociocentrismo, que passa pela aquisição de níveis crescentes de autonomia e que, ao tornar o indivíduo mais autônomo (e reflexivo) em relação à influência do ambiente permite que a pessoa opere com maior grau de autonomia; no campo dos valores (também para Piaget) seria sobre a transição do convencionalismo e da heteronomia (aceitação acrítica das influências de valor), para a autonomia da pessoa” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 63).

Para a condição humana social, cultural e historicamente circunstanciada, o estado de submissão, imposição e constrangimento das potencialidades da pessoa humana é tremendamente desemancipatório, pois abafa o potencial humano que poderia desabrochar, mas para isso exige ambiente acolhedor e respeitoso. A emancipação pessoal se constrói no exercício de diálogo crítico, reflexivo e criativo, aberto à problematização de tudo, no qual o sujeito é parte comprometida com a práxis social e com a produção de conhecimento emancipatório. Uma postura pessoal autônoma implica tomar decisões consequentes com esse modo de pensar.

Nos processos de emancipação o papel da cultura é imprescindível, pois “esta é a capacidade de abarcar as diversas expressões produtivas e espirituais da sociedade, de expressar os elementos essenciais que identificam os povos” (VÁZQUEZ; GONZÁLEZ, 2001, p. 24). Nessa perspectiva, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), O Movimento Indígena e Quilombola e outros valorizam muito as expressões culturais populares e a mística – ‘pulmão da luta’ -, sempre incentivando o máximo de criatividade nos inícios dos encontros, das lutas, durante e ao final, sempre com inserções plásticas – simbólicas – carregadas de vigor das causas que estão sendo defendidas.

Temos que reconhecer que estamos imersos em muitas crises, entre as quais uma crise ética sem precedentes na história. Uma revolução ética é urgente e necessária. O socialismo preconizado por Karl Marx, que se afirmou como uma utopia necessária e possível, infelizmente não foi implementado em toda sua plenitude durante o século XX em nenhum país. “A promessa de uma sociedade diferente, pós-capitalista, revolucionária e revolucionada, que encorajasse as capacidades humanas a partir de uma ordem equitativa e justa, não se tornou viável no século XX: o socialismo não se tornou um processo civilizatório e cultural diferente do capitalismo” (ALONSO, 1998, p. 16-17).

Por causa da violação de direitos humanos fundamentais pelo (des)governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) não podemos cometer a injustiça histórica de condenar todo e qualquer tipo de socialismo. Necessário se faz fazer uma distinção que Marta Harnecker faz: “estabelecer as distinções entre projeto e modelo para falar de socialismo após o fracasso do socialismo real: ou seja, “o projeto ou proposta socialista e certo modelo de socialismo [...] o que foi efetivamente derrotado foi um modelo de socialismo: o soviete, e não o projeto socialista como tal” (HARNECKER, 1999, p. 125).

Construir uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, ecologicamente sustentável, ecumênica e politicamente democrática continua sendo um sonho não realizado (“Sonho bom!”), não apenas porque não foi viável ao longo da história, mas também, e talvez principalmente, porque não foram aproveitadas as brechas da história e nem cunhas suficientes foram colocadas para bloquear a engrenagem do sistema do capital que continua cada vez mais avassalador e brutalmente violentador de direitos humanos e de direitos da natureza.

A luta pela terra se torna efetiva pela participação dos sujeitos Sem Terra (da mesma forma para os Sem Teto e Povos Tradicionais) ao descobrir que tem poder econômico quem controla o capital e exerce o poder político quem comanda o aparelho repressor do Estado e faz as leis. No entanto, o poder dos Sem Terra, dos Sem Teto e dos Povos Tradicionais está na participação, no número. Quanto maior e melhor for a participação dos sujeitos que lutam pela terra, por território e por moradia, mais vitórias serão conquistadas. Portanto, o conceito de participação é fundamental, mas este é um conceito análogo, pois pode ser entendido de diversas formas. Ajuda-nos o conceito de participação, apresentado por Kisnerman, citado por Hernández, que afirma: “Participar é [...] estar em algo, fazer parte, decidir, é tomar decisões e não simplesmente ser o executor de algo, é estar sujeito a todo um processo, portanto participação é a estratégia essencial em toda promoção comunitária” (KISNERMAN, 1990 apud HERNÁNDES, 2005, p. 109). A participação se expressa de diversas formas em todo o processo de luta coletiva pela terra, por território, por moradia e por outros direitos sociais. “[...] não só como resposta à mobilização convocada de um centro, mas intervenção ativa em todo o processo social, desde a identificação de necessidades, a consequente definição de políticas, até à execução, passando pela implementação e controlo em torno dessas políticas (GUZÓN apud HERNÁNDEZ, 2005, p. 110).

Há diversos níveis de participação e não há como lidar com o conceito de participação sem colocar em baila a noção de sociedade civil cunhada por Antonio Gramsci, que interpretou a questão do poder através do conceito de hegemonia. Conforme Jorge Acanda: “A teoria da hegemonia teve que desenvolver a teoria marxista do Estado, indo além de sua interpretação inicial como um mero conjunto de instrumentos de coerção, para interpretá-lo também como um sistema de instrumentos para a produção de liderança intelectual e consenso” (ACANDA, 2002, p. 244-245). A esse respeito Ovidio Hernández cita Gramsci nos Cadernos do Cárcere, onde o filósofo italiano comunista, enquanto estava preso, afirma: “O exercício normal da hegemonia [...] é caracterizado por uma combinação de força e consenso, que se equilibram de maneiras diferentes, sem que a força predomine demais sobre o consenso, e tentando fazer a força parecer baseada na aprovação da maioria, expressa através dos chamados órgãos de opinião pública (GRAMSCI apud HERNÁNDEZ, 2005, p. 111).

Enfim, a luta por direitos pressupõe autonomia, participação, mística libertadora, utopia socialista, tudo conjugado para conquistarmos emancipação humana. Eis um caminho emancipatório. Bem-vindo/a à luta por direitos!

 

Referências

ACANDA, Jorge Luis. Sociedad civil y hegemonía. La Habana: Centro Juan Marinello, 2002.

HARNECKER, Marta. Democracia y socialismo. In: Temas, n. 16-17. La Habana, 1999.

HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidad. La Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.

VÁZQUEZ, Elvira; GONZÁLES, Andrés. Las políticas culturales, su papel en los procesos de desarrollo. In: Memorias Primer Taller Nacional Intersectorial Comunitario, La Habana, UNESCO, 2001.

31/01/2023

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Frei Gilvander e CPT: Exigimos a Preservação integral da Mata do Jd. América, BH/MG! Natureza, SIM!

2 - Prédios de 17 andares com quase 500 aptos de luxo na Mata do Jd. América em BH/MG? Inadmissível!

3 - “Basta de propostas conciliatórias sobre a Mata do Jd. América, em BH/MG! Preservação 100%, JÁ!"

4 - Basta de especulação imobiliária na Mata do Jd. América, em BH/MG! O justo é preservação 100%, JÁ!

5 - SALVE a Mata do Jd. América, em BH/MG, com urgência! Anulação do acordo injusto e sob coação, JÁ

6 - Mata do Jd. América em BH/MG, único pulmão de 11 bairros de BH. Preservação INTEGRAL 100%, JÁ! v. 2



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III